quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O Valor Da Diversidade

Você está em uma casa de shows onde toca uma banda punk hardcore – um tipo de punk rock rápido e barulhento, com letras politizadas, em que as músicas dificilmente chegam a dois minutos de duração. O público é composto pelos tipos normalmente encontrados em apresentações do gênero: jovens com cabelos raspados ou moicanos, pulseiras e camisetas pretas ostentando os nomes de suas bandas prediletas, executam uma dança caótica em círculos, pulando e empurrando uns aos outros enquanto sacodem as cabeças ao ritmo da música.

Você constata que está em um ambiente viril e quase sente o cheiro de testosterona no ar. Eis que então um homem barbado e sem camisa invade o palco, agarra o vocalista e lhe dá um beijo... na boca! O vocalista não parece surpreso: devolve o beijo ao fã e o empurra de volta para a platéia; a música continua, e o refrão canta “I love boys hardcore!”.

Não, você não entrou por engano em uma balada gay; essa é realmente uma casa de shows e a banda está realmente tocando rock pesado. Só que essa banda tem uma peculiaridade: todos os músicos são gays e as letras tratam de questões relacionadas à vivência homossexual. Cenas como a descrita acima não são raras durante apresentações do Limp Wrist, um grupo norte-americano que se denomina “punk-hardcore-gay”. A expressão “limp wrist” significa pulso mole ou caído, uma referência a desmunhecar. Outros nomes de destaque na cena queercore são Youth of Togay – trocadilho com o nome de uma banda de punk hardcore já existente, a Youth of Today –, The Dicks, GO!, Fruit Punch, Nick Name e The Queers com os CDs Acid Beaters, Beat off, Don’t back down e Punk Rock Confidential.

Música e transgressão

A palavra queercore é uma combinação de “queer” – que tradicionalmente significa “estranho” ou “incomum”, e que a partir da metade do século 20 passou a significar qualquer coisa relacionada à cultura gay, especialmente sua parte mais politizada – com hardcore. O estilo vem atrelado a um conjunto de valores específicos, de modo a ocupar um espaço singular na cultura contemporânea. Pode ser reconhecido pelas letras, que exploram temas como preconceito, identidade sexual e de gênero, liberdade individual, consumismo e anarquismo. É interessante notar que o termo “punk” surgiu como uma gíria para designar gays em prisões, de modo que o preconceito no universo punk torna-se uma espécie de ironia triste.

A primeira característica que chama a atenção no movimento é o afastamento dos estereótipos normalmente associados aos homossexuais, como delicadeza, predileção por músicas alegres e dançantes, ou o culto exagerado do corpo, da juventude e da beleza. É como se o queercore fosse o emocore ao contrário: enquanto os emos, em sua maioria, são jovens heterossexuais que apresentam comportamento e visual andróginos, valorizando a sensibilidade e a expressão das emoções, o queercore é constituído de homossexuais que cultivam uma atitude rebelde e politicamente engajada, além de um visual agressivo. Assim, emocore e queercore realizam movimentos opostos, mas ambos apontam para uma mesma direção: a diversificação dos modelos de identidade de gênero. Em relação à comunidade gay e sua história, o queercore sustenta posições que desafiam o consenso estabelecido. É verdade que o preconceito parece ter diminuído nas últimas décadas, mas isso se deve em boa parte a uma popularização do conceito de pink money. Como gays e lésbicas não costumam ter filhos, tendem a ter menos despesas, logo, tendem também a ter poder aquisitivo maior do que o dos heterossexuais, podendo viajar mais, estudar mais e consumir mais. De olho nesses consumidores, empresas de vários segmentos – nomes como Calvin Klein, Ford e Diesel – vêm lançando campanhas milionárias direcionadas ao público GLBT – gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. Ora, sabe-se que punks em geral se opõem ao capitalismo e à lógica de mercado, e o queercore não poderia ser diferente: se por um lado o poder de consumo dos homossexuais facilita sua aceitação pela sociedade, por outro, cria uma situação de tolerância aparente e oportunista, baseada em interesses financeiros, e não em princípios humanos. Daí a desconfiança que sentem diante de mega-eventos como a Parada Gay de São Paulo - temem que o evento esteja perdendo sua função política original e se transformando numa grande festa comercial.

Queercore no mundo e no Brasil

O queercore surgiu fora dos sistemas comerciais, de modo que os fanzines – publicações não comerciais, produzidas de forma independente - foram cruciais para o seu desenvolvimento. Centenas de zines impressos ou eletrônicos formaram uma rede intercontinental, permitindo que o movimento se espalhasse de forma subterrânea e que membros de comunidades menores, afastados dos grandes centros urbanos, participassem. Um dos primeiros promotores da cultura queercore foi o cineasta canadense Bruce Labruce, que entre 1985 e 1991 editou o fanzine J.D.s – Juvenile Delinquents – onde lançou as bases para uma espécie de contra-cultura gay. Foi onde o termo queercore apareceu pela primeira vez. A cultura gay tradicional representava uma ortodoxia a ser contestada e superada, de forma semelhante a como os punks vêem a sociedade em geral. A partir dos anos 90, Labruce alcançou certa notoriedade com seus filmes que, de forma polêmica, viram estereótipos do avesso combinando homoerotismo com ideologias revolucionárias e porta-vozes da intolerância. Em Raspberry Reich, por exemplo, erotiza figuras revolucionárias, como Che Guevara e terroristas islâmicos. Ao retratar figuras tradicionalmente repressivas como homossexuais, Labruce propõe uma subversão na forma como entendemos sexualidade, identidade e relações de poder. Tudo, claro, com muito senso de humor.


No Brasil, a cena queercore dá as caras. Algumas das bandas mais comentadas são Nerds Attack, Textículos de Mary e Gay-O-Hazard, além da Dominatrix. Ano passado foi realizada a primeira edição do Queerfest, em São Paulo, um festival brasileiro de queercore. No impresso de divulgação da segunda edição do Queerfest, em março deste ano, foi publicado um texto de Michelle O’Brien intitulado How to define a term without defining the person – como definir um termo sem definir a pessoa – que diz: “Vejo-me relutante em dizer sou um homem ou sou uma mulher, ou fui um homem ou fui uma mulher ou me tornei isto ou aquilo; tanto quanto me sinto relutante em dizer sou intersexual, ou sou transgênero ou sou intergênero, ou sou gay, ou sou lésbica, ou não sou gay – porque isso não define quem sou. São apenas formas de me categorizar, de modo que outros tenham poder sobre mim; este poder é tão significativo que todas as forças do Estado e da medicina se envolvem na tentativa de forçar tal conformidade...” Esse pensamento, que parece proceder da História da Sexualidade de Foucault, expressa de forma pungente o desafio considerável que o queercore, enquanto proposta política, ainda tem de enfrentar. ©

Matéria disponível em: http://www2.livrariacultura.com.br/culturanews/rc11/index2.asp?page=comportamento

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