
Você constata que está em um ambiente viril e quase sente o cheiro de testosterona no ar. Eis que então um homem barbado e sem camisa invade o palco, agarra o vocalista e lhe dá um beijo... na boca! O vocalista não parece surpreso: devolve o beijo ao fã e o empurra de volta para a platéia; a música continua, e o refrão canta “I love boys hardcore!”.

Música e transgressão
A palavra queercore é uma combinação de “queer” – que tradicionalmente significa “estranho” ou “incomum”, e que a partir da metade do século 20 passou a significar qualquer coisa relacionada à cultura gay, especialmente sua parte mais politizada – com hardcore. O estilo vem atrelado a um conjunto de valores específicos, de modo a ocupar um espaço singular na cultura contemporânea. Pode ser reconhecido pelas letras, que exploram temas como preconceito, identidade sexual e de gênero, liberdade individual, consumismo e anarquismo. É interessante notar que o termo “punk” surgiu como uma gíria para designar gays em prisões, de modo que o preconceito no universo punk torna-se uma espécie de ironia triste.
A primeira característica que chama a atenção no movimento é o afastamento dos estereótipos normalmente associados aos homossexuais, como delicadeza, predileção por músicas alegres e dançantes, ou o culto exagerado do corpo, da juventude e da beleza. É como se o queercore fosse o emocore ao contrário: enquanto os emos, em sua maioria, são jovens heterossexuais que apresentam comportamento e visual andróginos, valorizando a sensibilidade e a expressão das emoções, o queercore é constituído de homossexuais que cultivam uma atitude rebelde e politicamente engajada, além de um visual agressivo. Assim, emocore e queercore realizam movimentos opostos, mas ambos apontam para uma mesma direção: a diversificação dos modelos de identidade de gênero. Em relação à comunidade gay e sua história, o queercore sustenta posições que desafiam o consenso estabelecido. É verdade que o preconceito parece ter diminuído nas últimas décadas, mas isso se deve em boa parte a uma popularização do conceito de pink money. Como gays e lésbicas não costumam ter filhos, tendem a ter menos despesas, logo, tendem também a ter poder aquisitivo maior do que o dos heterossexuais, podendo viajar mais, estudar mais e consumir mais. De olho nesses consumidores, empresas de vários segmentos – nomes como Calvin Klein, Ford e Diesel – vêm lançando campanhas milionárias direcionadas ao público GLBT – gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. Ora, sabe-se que punks em geral se opõem ao capitalismo e à lógica de mercado, e o queercore não poderia ser diferente: se por um lado o poder de consumo dos homossexuais facilita sua aceitação pela sociedade, por outro, cria uma situação de tolerância aparente e oportunista, baseada em interesses financeiros, e não em princípios humanos. Daí a desconfiança que sentem diante de mega-eventos como a Parada Gay de São Paulo - temem que o evento esteja perdendo sua função política original e se transformando numa grande festa comercial.
Queercore no mundo e no Brasil
O queercore surgiu fora dos sistemas comerciais, de modo que os fanzines – publicações não comerciais, produzidas de forma independente - foram cruciais para o seu desenvolvimento. Centenas de zines impressos ou eletrônicos formaram uma rede intercontinental, permitindo que o movimento se espalhasse de forma subterrânea e que membros de comunidades menores, afastados dos grandes centros urbanos, participassem. Um dos primeiros promotores da cultura queercore foi o cineasta canadense Bruce Labruce, que entre 1985 e 1991 editou o fanzine J.D.s – Juvenile Delinquents – onde lançou as bases para uma espécie de contra-cultura gay. Foi onde o termo queercore apareceu pela primeira vez. A cultura gay tradicional representava uma ortodoxia a ser contestada e superada, de forma semelhante a como os punks vêem a sociedade em geral. A partir dos anos 90, Labruce alcançou certa notoriedade com seus filmes que, de forma polêmica, viram estereótipos do avesso combinando homoerotismo com ideologias revolucionárias e porta-vozes da intolerância. Em Raspberry Reich, por exemplo, erotiza figuras revolucionárias, como Che Guevara e terroristas islâmicos. Ao retratar figuras tradicionalmente repressivas como homossexuais, Labruce propõe uma subversão na forma como entendemos sexualidade, identidade e relações de poder. Tudo, claro, com muito senso de humor.

Matéria disponível em: http://www2.livrariacultura.com.br/culturanews/rc11/index2.asp?page=comportamento