sábado, 30 de abril de 2011

Mais, bem mais informações sobre homofobia para Rica Perrone e cia

Representação da musa inspiradora, que se debruça sobre o mundo e difunde o conhecimento. Afresco de George Biddle na Biblioteca Nacional
Reproduzo abaixo comentário que o jornalista Luiz Henrique Coletto postou no blog de Rica Perrone em resposta às opiniões equivocadas e preconceituosas emitidas por seu colega de profissão. Em seu texto, Perrone resolveu falar a respeito de temas sobre os quais demonstra absoluta ignorância: homossexualidade e homofobia. O resultado não poderia ser diferente, um texto raso, desinformado e repleto de preconceitos. O texto em que apresenta esse comentário é o segundo do hiperlink logo abaixo.
*Por Luiz Henrique Coletto
Caro Rica Perrone, antes de tudo: eu e muitos outros gays (ou viados) temos muitíssimo interesse em argumentar sobre os temas que nos dizem respeito e esta, talvez, seja uma rara oportunidade. Há uma diferença substancial entre o tom do seu texto anterior (que eu vou qualificar como raso, no sagrado direito de fazer juízo de valor de ideias) e este de hoje, que foi um pouco mais educado.
Entretanto, permita-me discordar profundamente. Do de ontem eu discordei em praticamente tudo que não tive ânimo para tecer uma réplica – e felizmente outros blogueiros e jornalistas o fizeram com muita qualidade -, mesmo porque, sendo sincero novamente, era um amontoado de pérolas de quem não sabe o que é homofobia (e isto não é propriedade dos gays, mas sim de quem estuda a questão ou se permite à empatia de modo mais profundo) e fez o que muitos dos blogueiros e jornalistas (eu sou um – jornalista) fazem: falar de tudo mesmo sem se dar ao trabalho de pesquisar um pouco mais detidamente sobre a questão.
Primeiro, a ideia de que a maioria está com você é o quê? Um atestado de que você disse algo sensato ou coerente – ou que não possui homofobia? Não preciso dar exemplos de que maioria não dignifica nada necessariamente (nazismo), embora seja importante (democracia).
Segundo, você pode ser contra uma punição no vôlei. Pode ser contra qualquer punição. E contra qualquer coisa, aliás. Entretanto, ao manifestar sua ideia, sabe que receberá críticas. Ter um blog e postar nele é, inclusive, ter a mais clara noção disto.
Terceiro, a estratégia mais manjada, velha e vazia para começar uma abordagem sobre gays ou negros ou judeus ou pessoas com deficiência é dizer “tenho um na família”, “tenho amigos que são”, “convivo com eles”. Ora, existem gays que são homofóbicos, negros que são racistas (etc.), portanto a ideia de que ter alguém que seja gay no seu convívio valida sua opinião ou confere um grau de “isenção de preconceito” a ela é uma ilusão completa. Note que a questão aqui é a relação da homofobia com o esporte (sua área de trabalho, presumo), e não artistas gays, carnaval ou o que seja, afinal, é simples colocar tais exemplos sem que eles sejam pertinentes à discussão em si. Criticou-se sua visão homofóbica (eu explico depois) em relação ao caso da homofobia no esporte (que você ignora). Além disso, o seu completo desconhecimento sobre o que seja orientação sexual. Você, inclusive, não faz qualquer questão de saber sobre o assunto, opina sobre ele e sente-se ofendido quando é criticado de forma veemente? Como assim?
Quarta questão: ninguém está questionando o seu direito (e o de todos) de gostar e não gostar de qualquer pessoa. Isto é claro como a luz e não está em discussão. Entretanto, não gostar de todo um grupo social a partir de uma característica constitutiva sua (negritude nos negros; homossexualidade nos gays) – e podemos ir além, pensando em características socioculturais que também são constitutivas, como a origem social, a religiosidade, etc. -, isto precisa ser bem pensado. É um sinal, sim, de preconceito. Poderia abordar a questão mais longamente, mas o que interessa aqui é: mesmo sendo um grupo social todo, você realmente não é obrigado a gostar de ou conviver com estas pessoas, a não ser em espaços públicos.
Quinto, este papo de não sou de grupo, ONG, ou partidário de algo pró ou contra é pura balela. Sua opinião é pró ou contra algo, e estando ou não formalmente inserido num grupo, você terá suas opiniões relacionadas a de outros que pensam similarmente a você. O fato de o terem comparado com “radicais héteros” (risos) e ao Bolsonaro é um indicativo disto. Muito embora lendo seu texto de hoje eu não possa compará-lo ao Bolsonaro (que numa “escala de homofobia” minha, estaria muito acima de você), você não deixou de manifestar homofobia e de ser, sim, visto como aliado de quem não defende os gays. Lembrando: respeitar é defender o direito de existência. Eu posso não ser um “militante pelos ciganos”, mas se eu não defendo o direito de existência real e plena dos ciganos, eu sou contra eles.
Sexto (e mais importante): a sua frase a seguir é que indica o principal problema com sua “homofobia não esclarecida”. Você diz, “eu só fui contra uma punição e tentei explicar aos amigos que no futebol sempre foi assim e que a atitude daquela torcida não foi homofobica. Foi comum, natural”. Todos nós sabemos que esta atitude (a homofobia) é comum no futebol; é por isso, inclusive, que há quase nenhum gay assumido no futebol brasileiro, porque a homofobia é gritante. Se você realmente entende de futebol, sabe que há muitos gays ali, mas todos no armário.
A atitude daquela torcida foi sim homofóbica. E não foi natural. E eu entendo totalmente a dificuldade de você (e a maioria dos seus leitores, enfim, da sociedade) ver isto por uma simples razão: homofobia não é um acontecimento raro que vem dentro de uma nave espacial e “brilha” na nossa cara; homofobia é parte da nossa cultura, está na nossa linguagem (quase todos os termos que identificam a homossexualidade e os gays são utilizados, no cotidiano, como ofensa: gay, viado, bicha, baitola, puto, marica, mulherzinha – este é misógino também! – e muitos outros), na nossa educação, até bem pouco tempo de forma massiva na imprensa, etc. Eis o ponto: a homofobia não é natural, ela foi NATURALIZADA. É exatamente assim que ocorreu com a dominação masculina sobre as mulheres: foi naturalizada para dentro da cultura por tantos milênios que só depois de todo um conjunto de manifestações, teorias, intelectuais, lutas e passeatas que começou a ser combatido (divórcio, voto igualitária, leis trabalhistas, etc.). O mesmo em relação aos negros, às pessoas com deficiência e outros grupos sociais. Volte no tempo e o mesmo ocorreu também com canhotos, com cientistas (eram as bruxas da fogueira católica)…
Quando se grita “viado” para o jogador a intenção é desestabilizá-lo? Sim. E isto ocorre por meio de uma ofensa? Sim. Então em que ponto está a dificuldade de ver homofobia nisto? Se homofobia é preconceito contra gays (conceito reduzido), utilizar uma palavra que indica homossexualidade tentando ofender/desestabilizar alguém é, voilà, homofobia. Claro como a luz mais uma vez.

Torcida do Vôlei Futuro exibe bandeira em apoio ao jogador Michael 
“Puta, ladrão, gordo” e outros xingamentos “naturais” (é?) dentro do futebol também são ofensivos e discriminatórios. E utilizá-los como argumento para defender a homofobia no futebol é ignorar que são todas palavras ofensivas. Entretanto, como muitos blogueiros já disseram (e não sei se você leu), ninguém é sistemática, cotidiana e especificamente ofendido, agredido, humilhado, demitido e mesmo assassinado por causa de tais xingamentos. Acho até desgastante ter que analisar cada um dos xingamentos para ver qual a diferença entre puta, gordo, ladrão e etc. enquanto palavras que indicam uma característica ou uma vivência ou uma atitude criminosa, etc.
MEC e Unesco lançam livro que trata da homofobia nas escolas
Não há país no Ocidente que não tenha militância, dados, informações e setores que discutam a homofobia. Isto inclui a Organização Mundial da Saúde e vários organismos da própria ONU. Apenas isto já deveria ser um sinal de que, sim, há algo de específico na homofobia e que ignorar isto para defender o caráter “natural” da discriminação aos gays no futebol é, voilà, ser homofóbico e perpetuar a homofobia. Foi, infelizmente, o que você fez.
Sétimo ponto: quanto ao tema do “filho gay”, prefiro nem comentar muito. Acho que uma boa tirada foi feita no twitter sobre isto: há quem pense em ter filhos como se fosse ter um animal de estimação. Estas comparações rasas entre pessoas e coisas (cores, chocolate e outras que você fez) é uma redução do debate tão grande que fomenta as agressões que você recebeu. E com considerável razão, já que este país é muito homofóbico, estamos num momento de alta exposição da homofobia na mídia (protesto nazifacista em São Paulo, declarações do dep. Bolsonaro, homofobia no esporte!) e você postou um texto que é homofóbico e que reflete, sim, sua homofobia, mesmo que ela seja por desconhecimento do que seja homofobia e suas diversas formas de ocorrência. Aliás, por que ninguém grita “sapatona” no show da Maria Gadu? Provavelmente seria um constrangimento. No jogo pode por quê? Talvez porque no “calor do momento” tentemos achar uma forma rápida de atingir (o seu sutil “desestabilizar”) o adversário: qual a melhor estratégia senão aquela que o ofenda rapidamente? Então chamar de viado é um clássico exemplo. E isto não é homofobia na sua visão…
Oitavo: é ridículo você fazer drama com a enxurrada de críticas. Milhares leram seu texto ontem, mas outros milhares (e arrisco que quase nenhum dos primeiros milhares fosse gay) leram depois porque alguém notou a homofobia gritante do seu texto e divulgou. Seu texto pode ser lido daqui a 10 anos aqui e gerar mais milhares de críticas. O que é colocado na internet pode ficar nela para sempre. E um jornalista sabe disso. Aliás, quase todos sabem disso.
Penso que somos “previsíveis” por uma razão simples: a homofobia é previsível. Você sabia que estava mexendo num tema delicado e, portanto, sabia que seria criticado. Confundir as duras críticas com “sacanear” é muito pueril. A estratégia de boicote aos patrocinadores de uma empresa/blog é a mais comum em países como os Estados Unidos, França, Inglaterra e outros. Aqui no Brasil também tem começado a ser assim. E é uma das únicas estratégias eficientes numa sociedade capitalista. Eu considero seu texto profundamente homofóbico e tenho a intenção de combatê-lo (suas ideias) como for possível, o que inclui boicotar quem te patrocina.
Homossexualidade não é opção
Nona questão: orientação sexual (é o termo atualizado para a velha ideia de opção sexual) nunca foi opcional em lugar ou tempo algum. Este debate é tão longo que eu vou colocar apenas um ponto de caráter “lógico”: a menos que se considere que todos os gays sofram de algum transtorno psicológico profundo que os atraia para a dor (e, para a tristeza de tantos, não é o caso), nenhuma pessoa em sã consciência escolheria ser homossexual numa sociedade que repudia os homossexuais no seu sistema educacional, na imprensa, nas religiões majoritárias, na política, no sistema trabalhista, nas famílias, nos espaços públicos; numa sociedade que os nega dezenas de direitos civis, que até pouco tempo os considerava doentes, que há algum tempo os tentava curar (sic) com experimentos corporais, hormonais e psicológicos e que, num tempo quase remoto, os prendia, os torturava e os queimava. Alguns milhares de gays mortos no nazismo e alguns milhares de gays atualmente ainda enforcados, apedrejados e assassinados em vários países são a prova viva (e MORTA) de que ser gay não é nada fácil. E por gays estou falando de lésbicas, travestis e transexuais também. Logo, ignorar todo o contexto social em que vivemos para gritar que é uma opção é desconhecimento profundo. Se hoje eu tivesse a “faculdade de escolher” ser gay ou hétero, sem titubear escolheria ser gay. Mas isto é fruto de muita pancada e muita reflexão. Portanto, ninguém escolhe quem o atrairá, seja um homem, uma mulher ou ambos.
De qualquer modo, mais importante é: se fosse opcional, continuaríamos na mesma situação deste debate. Eu tenho direito de fazer o que quiser com minha vivência sexual, contanto que não obrigue ninguém a nada e o faça com pessoas civil e mentalmente sãs. Tudo muito simples.
Décimo: se você nunca foi tão ofendido na sua vida, talvez tenha mais clareza do que seja ser ofendido toda a vida. Talvez tenham sido apenas discordâncias das suas ideias, afinal, foi apenas sinceridade de quem discordou de você, as pessoas não quiseram ser hipócritas fingindo que você foi autêntico e crítico no seu texto… A gente leu algo assim por aqui não?
Representação dos frutos da ignorância no mundo: violência, morte, desespero. Afresco de George Biddle na Biblioteca Nacional
Confundir preconceito com moda (oi?) é difícil classificar: ingenuidade, má fé, preconceito mesmo? A solução é muito simples: procure um historiador, um biólogo, um médico, um psicólogo, um antropólogo, um cientista político e pergunte a eles se a homofobia é uma moda recente, tipo, criada ontem pra “causar bafo e dar pinta” no futebol. Você pode continuar achando que “o que houve no jogo de Voley, pra mim, não foi preconceito”, pois é um direito absoluto seu achar qualquer coisa. Ainda assim, a homofobia continuará sendo algo real, muito presente no futebol, e não uma moda recente. Assim como a gravidade continuará existindo se você quiser achar que não. Achismo não muda a realidade.
Por fim, acho que conhecimento real de um assunto é que uma coisa “muito fora de moda”. Sem isso, é fácil falar. Difícil é ouvir. E compreender as duras críticas de quem tem conhecimento do assunto. Você, admita ou não (acho que admitiu), não sabe nada sobre o assunto, apenas sabe que há séculos grita-se “viado” no futebol e, já que fazem isso há tanto tempo, deve ser natural. É tão natural quanto era queimar negros em árvores nos Estados Unidos no começo do século XX. “Um dia” alguém disse que não era que se precisava mudar aquilo. Certamente um “outro alguém” rebateu perguntando “qual é a novidade em um negro ser queimado na árvore? Qual foi o dia, dentre os últimos 9 milhões de dias, onde não fizemos isso?”.
Provavelmente uma comparação tosca. Para argumentos toscos.
É isso, aí estão minhas críticas. Passar bem.
*Luiz Henrique Coletto, jornalista graduado pela UFSM e mestrando em Comunicação e Cultura na UFRJ. Estuda discurso e pesquisa sobre (homo)sexualidade, em especial na mídia.

ARTIGO NA REVISTA ECO-PÓS:

A Homossexualidade em Veja:  Limites e Expansões de Sentidos
Márcia Franz Amaral e Luiz Henrique Coletto
Disponível em: http://www.pos.eco.ufrj.br/ojs-2.2.2/index.php/revista/article/view/363/407

Um comentário:

  1. Caro Jadilson, agradeço a divulgação de minha resposta. Aproveito para um comentário fora do tema: é interessante notar as propriedades que um gênero discurso possui. Lendo meu texto aqui no seu blog, notei como ele é consideravelmente pobre para ser um texto central (você, inclusive, o melhorou fazendo uso do hiperlink). Como este texto, originalmente, é um comentário num blog, ele possui estas características mais "informais": certa coloquialidade, construções mais próximas da fala do que da escrita, ausência de referências externas (os hiperlinks) e mesmo pouca contextualização temática já que o comentário pressupõe conhecimento prévio do texto central (de que se comenta). De qualquer modo, creio que fica compreensível ao leitor o que estou criticando e, naturalmente, a possibilidade de detalhar cada um destes argumentos.

    Abraços e obrigado. =)

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