terça-feira, 27 de julho de 2010

Para além dos mitos, lendas e ressignificações


Em pleno século XXI a sociedade brasileira ainda vive e parece que sempre viveu cercada de mitos a respeito de si mesma. Vivemos em uma sociedade desigual, preconceituosa e intolerante, mas muitos preferem manter os olhos fechados para essa realidade preferindo viver escondidos atrás do véu da hipocrisia acreditando no mito de que vivemos no melhor dos lugares. Muitos talvez não enxerguem essa realidade por acreditarem cegamente no mito fundador de nossa sociedade que afirma que somos um povo justo, pacífico, tolerante, ordeiro e que por termos surgidos da miscigenação de raças nos tornamos um povo sem preconceitos. Não é preciso mais que um olhar menos superficial para a realidade para percebermos que ela em nada condiz com esse mito. Uma das piores conseqüências advindas da crença nesse mito é que ele pode servir (e serve) como mecanismo para camuflar o racismo, o machismo e a homofobia presente em nossa sociedade. E pior ainda é que esse mito de sermos um povo ordeiro e pacífico serve também para deslegitimar a luta de muitos movimentos sociais na busca por igualdade de direitos e oportunidades. Muitos dos que acreditam nesse mito, tendem a considerar qualquer movimento que reúna pessoas no espaço público para reivindicar algo como gente baderneira e marginal que perturba a ordem.

Essa cegueira da sociedade e do Estado brasileiro pode muito bem ser percebida pela desigualdade de direitos e pela violência que enfrenta o grupo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). Aos casais homossexuais são negados pelo Estado em torno de 78 direitos em comparação aos que são garantidos aos casais heterossexuais. Em relação à violência a que este grupo está exposto temos entre outras, a pesquisa do Grupo Gay da Bahia (GGB) que revela que a cada dois dias um homossexual é morto no Brasil vitima de crimes homofóbicos (ver nota). A crença generalizada no mito de que vivemos em um país que 1) é “um dom de Deus e da Natureza”; 2) tem um povo pacífico, ordeiro/generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor; 3) é um país sem preconceitos...” (CHAUÍ, 2000, p.8), não condiz com a realidade em que vivem as Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais brasileiros.

A homofobia é um termo utilizado pelo Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) e pelos defensores da causa dos LGBT para identificar o ódio, a aversão ou a discriminação das pessoas contra os homossexuais e, consequentemente, contra as homossexualidades. A homofobia também pode se apresentar em formas sutis, silenciosas e insidiosas de preconceito e discriminação contra homossexuais. Alguns estudiosos, sociólogos ou opositores do MHB se posicionam contra o uso do termo homofobia alegando que o seu conceito possui um caráter polissêmico e que talvez ele não seja capaz de produzir os efeitos dele esperado. O que muitos desses estudiosos - que usam dos mais diversos sofismas para justificarem o não uso do termo, sua ressignificação ou sua substituição - não compreendem ou não pretendem compreender é que essas mesmas atitudes foram utilizadas em relação ao racismo, a xenofobia e a escravidão como forma de relativização dessas questões.

É preciso levar em consideração que mesmo um acadêmico tendo como objeto de sua pesquisa a diversidade sexual ou que se apresente como simpático à causa LGBT, isso não significa que ele seja a favor das proposições do Movimento Homossexual Brasileiro. É notório que dentro das academias existem grupos de pesquisadores que contribuem com suas pesquisas, artigos e livros para um embasamento teórico, discussão e registro da história do Movimento Homossexual Brasileiro e iniciativas para o combate ao preconceito homofóbico. Um exemplo recente e inovador é o programa Educação Sem Homofobia desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais. O programa consiste na capacitação de profissionais da rede pública de educação para lidarem com o tema da diversidade sexual na escola. Apesar da existência de iniciativas importantes como essa, não podemos negar que existem também acadêmicos contrários à luta desse movimento social e de suas proposições, mesmo muitos não se posicionando claramente sobre isso. Usando teorias ultrapassadas ou vestidas com novas roupagens com o intento de sedimentarem suas posições, muitos desses estudiosos procuram com seus trabalhos e posições relativizar e desviar a atenção das lutas desse movimento. É inegável que os homens são movidos por suas paixões e interesses e mesmo que implicitamente, os seus argumentos ou contra argumentos refletem a defesa daquilo que acreditam. As academias são compostas por atores que representam e muitas vezes reproduzem o pensamento e a posição da sociedade em que estão inseridos e as discussões que acontecem dentro delas não estão livres disso. As posições assumidas dentro das academias representam muitas vezes os interesses díspares existentes na sociedade, portanto não é estranho que existam posições favoráveis e contrárias aos temas discutidos e em relação ao Movimento Homossexual Brasileiro e suas proposições isso não é diferente.

Muitas vezes o interesse que existe por trás dessa suposta problematização em relação ao uso do termo homofobia é desviar a atenção do que realmente está em pauta que é a criminalização dos atos homofóbicos. Não se pode negar que essa problematização também sirva como ferramenta para aqueles que são contrários à aprovação do Projeto de Lei 122/2006 que pretende criminalizar a homofobia, na medida em que ela pode ser usada como arma para protelar ad eternum a sua aprovação através da complexificação de questões secundárias e triviais. A discussão em torno do uso do termo homofobia é mais umas das estratégias de relativização e neutralização da luta do movimento homossexual que pleiteia a aprovação desse Projeto de Lei. A procura pelo melhor termo e melhor conceito que expresse a forma de violência a que são vitimas os LGBT pode servir como subterfúgio para desviar o MHB do escopo de uma de suas lutas, que é criminalização da homofobia, e ainda servir como uma forma de relativização e despolitização dessa luta.
Precisamos ter em mente que a luta do MHB pela equidade de direitos, pelo respeito e reconhecimento da diversidade sexual perante o Estado é uma luta política onde atores favoráveis e contrários têm seus interesses e lutam com as armas que possuem.
A discordância entre acadêmicos e militantes em relação ao uso de conceitos e termos relacionados com a homossexualidade não é nova. Mesmo após o termo homossexualismo - que em seu sufixo denotava doença - ter sido substituído por homossexualidade e ter sido aceito pela maioria, o psicanalista Jurandir Freire Costa em seu livro “A inocência e o vício” defendeu a sua troca por homoerotismo. A maioria dos militantes do MHB rechaçou a preferência do autor por esse termo, pois viu isso como uma forma de relegar as relações homossexuais apenas ao campo das práticas sexuais e do erotismo em detrimento da homoafetividade e da orientação sexual. O exemplo citado é apenas um dos casos em que ocorre discordância entre o MHB e alguns teóricos acadêmicos que têm como tema de suas pesquisas e trabalhos a diversidade sexual, ambos parecem algumas vezes possuir interesses distintos e algumas vezes isso não deixa de ser uma realidade.
Em relação ao conceito de homofobia parece ser consenso entre acadêmicos e militantes do MHB reconhecer o seu caráter polissêmico e concordarem que as formas como ela se apresenta também são diversas, mas a relativização desse conceito e das situações que o envolve pode levar a discussão da homofobia para o campo perigoso do subjetivismo. Num cenário de luta por equidade de direitos, reconhecimento e respeito à diversidade sexual, a relativização do conceito de homofobia serve mais aos interesses daqueles contrários a sua criminalização do que para os que lutam para que esses crimes não aconteçam impunemente. É inegável que além da violência que vitima centenas de LGBT a cada ano no Brasil, a homofobia se apresenta de muitas outras maneiras. Seja através do bullying, difamação, injúrias verbais ou gestos e mímicas obscenos mais óbvios até formas mais sutis e disfarçadas, como a falta de cordialidade e a antipatia no convívio social, a insinuação, a ironia ou o sarcasmo. Em muitos desses casos a vítima de homofobia tem dificuldade em provar objetivamente que a sua honra ou dignidade foram violentadas. Por isso, o MHB não pode cair nas armadilhas do subjetivismo sociológico que provoca a despolitização do movimento além de desviar o foco do que é premente que é a criminalização do preconceito a que são vitimas os LGBT.

Não podemos fechar os olhos para a realidade de violências a que esse grupo sempre esteve exposto e nem negarmos que historicamente os homossexuais tiveram seus direitos negados pelo Estado sob o olhar cúmplice da sociedade brasileira que prefere ficar cego para a realidade acreditando no mito que somos um país tolerante e sem preconceitos. Precisamos enxergar a nossa realidade para além desses mitos e crenças para que possamos buscar a construção de uma sociedade verdadeiramente justa que respeita as diferenças, promove a igualdade de direitos e oportunidades para todos os seus cidadãos independentemente da sua raça, identidade de gênero, classe social ou orientação sexual.

NOTA:
Relatório anual do GGB revela que 260 LGBT foram assassinados no Brasil em 2010, isso mostra que a cada 36 horas um LGBT é morto no Brasil vítima da homofobia.


Referências:
CHAUÍ:Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a disputas. Bagoas jul/dez 2007;1(1):145-65.

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