domingo, 26 de abril de 2015

Adonis, o filho do pastor



Adonis, o filho do pastor 

Adoni-Zedeque, rapaz moreno, corpo esguio e estatura forte, herdou olhos esverdeados da família da mãe. Adonis, foi assim que ficara conhecido por muitos pela dificuldade que as pessoas tinham em pronunciar o nome que lhe fora dado por Severo, seu pai,  que sempre o chamava pelo nome completo. Com seus quase um metro e oitenta, Adonis era um jovem rapaz muito educado, gentil, de fala mansa e olhar suave. Era filho único de dona Amália e do pastor Severo, influente líder de uma igreja neopentecostal sediada na capital paulista com filiais no interior de São Paulo e sedes em outros estados. Era um rapaz que mesclava momentos em que demonstrava ser bem extrovertido e outros em que aparentava uma personalidade introvertida, mas sua maneira educada e gentil sempre fez dele um jovem muito querido por todos na igreja do seu pai, na escola e na vizinhança. “É um ótimo rapaz, muito educado e estudioso” dizia uma fiel da igreja de Severo que Adonis cresceu frequentando os cultos que o pai ministrava. Severo, pai de Adonis, era homem de aparência sempre elegante que gostava de roupas sociais clássicas e com bons cortes que combinavam com seu aspecto de pessoa sociável, mas sempre muito sistemático.

Adonis, ou Adoni-Zedeque como prefere Severo, desde pequeno frequentou a Igreja de seu pai, desde o tempo em que ela não passava de um pequeno salão na região de Vila Matilde que em nada se compara ao templo de hoje na Liberdade. Depois de crescido, algumas vezes, Adonis junto com sua mãe acompanhava as viagens do pai que ministraria cultos no interior de São Paulo e em inaugurações de novas sedes da igreja em outros estados. Adonis sempre se encantava com a verve do pai pregando para igrejas cheias e para as multidões que se formavam nos famosos sermões da montanha e nos grandes encontros realizados em campos de futebol ou grandes áreas reservadas para eventos. Os olhos dele brilhavam quando via os fiéis em verdadeiro êxtase ouvindo os sermões que o pai preparava dias antes. Severo sempre pregava em defesa da família cristã tradicional, contra o aborto, mas a sua verve se tornava mais eloquente quando pregava contra o “homossexualismo”. Desde muito cedo, sob o olhar do filho e da esposa, o pastor Severo dizia para seus fiéis em voz apocalíptica:

- Irmãos e irmãs, o demônio do homossexualismo quer destruir a família brasileira! 

- A palavra de Deus condena o homossexualismo como está escrito no livro de Levítico 18:22 “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher, é abominação”. O homossexualismo meus irmãos e irmãs é apenas uma porta que levará muitos para as drogas, para o alcoolismo e para a pedofilia, por isso, irmãos, devemos nos livrar desse mal.

Dizia o pastor Severo aos brados. E continuava:

- E agora, irmãos e irmãs, essas pessoas doentes e pecadoras estão querendo privilégios! Querem aprovar uma lei que legalize as suas práticas imundas e querem punir quem disser algo contra a vida de pecado deles. Falar do que diz a palavra de Deus, irmãos e irmãs, será crime, vamos nos mobilizar contra essa lei que institucionaliza a prática do pecado que condena a bíblia, vamos pressionar nossos irmãos e irmãs de fé no Congresso para não aprovarem leis que permitam que isso seja crime, pois esses demônios querem calar a palavra de Deus e implantar no Brasil uma ditadura gay. Amém, irmãos e irmãs?!

Em resposta às falas de Severo os fiéis sempre respondiam amém.    

- Irmãos e irmãs, caso vocês suspeitem ou constatem que algum membro da sua família sofra dessa doença não os abandone, traga-os para a casa de Deus, traga-os para a nossa igreja para que possamos orar e curarmos e libertamos esse seu parente da possessão demoníaca do homossexualismo.

E finaliza o sermão, o pastor Severo:

- E se vocês, irmãos e irmãs, me perguntarem por que não abandonarmos essas pessoas doentes e possuídas pelo demônio do homossexualismo, eu vos digo, Jesus na Bíblia nos ensina que devemos amar o pecador, mas não o pecado. Portanto, irmãos e irmãs, a cura do homossexualismo é Jesus! Amém, irmãos e irmãs?!

E os fiéis todos respondem em uníssono:

- Amém, pastor, amém!

Quando ainda era criança, Adonis, orgulhoso e impressionado com o poder do pai de atrair e prender a atenção de multidões com seus sermões chegou a pensar em seguir seus passos e ser pastor como ele. Já crescido, o rapaz sonhava mesmo era em ser ator ou artista plástico pelo encanto que sempre teve com as artes em geral, mas foi alertado pelo pai que caso escolhesse esse curso a família seria alvo de chacotas das pessoas por escolher uma área onde existem muitos homossexuais. Severo dizia ao filho que esses cursos são considerados “cursos de mulherzinhas”. “Cursos para homens de verdade meu filho, são engenharia, medicina ou administração” dizia ele. Severo alertava o filho que esse ambiente de atores e artistas plásticos eram repletos de “viado e sapatão” e que ele ficaria com má fama e que o ambiente não seria apropriado para o filho de um ministro da igreja e que poderia acabar sendo contaminado pela má influência dos muitos homossexuais presentes nesses locais. Anos depois, quando já no final do ensino médio e se preparando para prestar o vestibular, Adonis se lembrou dessa conversa e mesmo demonstrando certa contrariedade resolveu acatar a ideia do pai e decidiu então prestar vestibular para administração. O pai, feliz com a obediência do filho, tentava lhe animar e incentivar dizendo “Um grande administrador poderá administrar grandes multinacionais e também saberá administrar os bens da nossa família!” e sorria contente com a escolha do filho. 

Nos finais de ano, algumas vezes, era comum Adonis viajar com seu pai e sua mãe para cultos e encontros de igrejas em outros estados, mas nesse ano Adonis não poderia viajar, pois prestaria o seu primeiro vestibular na USP para Administração. Apesar de ter estudado nos melhores colégios e escolas e ter frequentado um dos melhores cursos pré-vestibulares, mesmo assim, como muitos outros vestibulandos, a ansiedade tomou conta de Adonis naqueles dias que antecediam as provas. Até mesmo as avaliações da escolha do curso influenciada pelo pai, que sempre lhe povoavam as lembranças, desapareceram naqueles dias que antecediam a primeira etapa do vestibular.

O pai de Adonis viajou sozinho e a mãe dona Amália ficou para dar apoio ao filho durante o período do vestibular. Dona Amália era só orgulho de ver o filho já crescido agora se preparando para entrar na universidade. Apesar do orgulho, uma sensação estranha lhe ocorria quando ela pensava no filho frequentando a USP que sempre foi um sonho dela não realizado, afinal, havia se casado muito cedo com Severo, logo engravidou de Adonis e depois por ter sentido obrigada a ajudar o marido com as questões da igreja. Um frio percorria a espinha de Amália quando ela pensava no filho na universidade. Ela não entendia aquela sensação estranha, mas Severo sempre tentava tranquiliza-la quando ela falava sobre esse incômodo “É emoção de ver nosso filho crescido e se encaminhando bem na vida” e completava “Fomos abençoados com nosso Adoni-Zedeque, ele é um orgulho para mim e um exemplo para nossa igreja!” dizia orgulhoso. Dona Amália continuava com a sensação estranha mesmo após as falas do marido tentando persuadi-la.

Nessa ocasião, o pai de Adonis participava de um encontro de Igrejas em Belo Horizonte e resolvera prorrogar a estadia na cidade para resolver algumas pendências do encontro. Esse fato, de certa forma, preocupou um pouco a dona Amália que nem suspeitava, mas Severo estava hospedado num hotel no centro da cidade próximo a uma zona de prostituição, mas dona Amália confiava no marido, mesmo muitas vezes não gostando quando ele viajava sozinho e prorrogava a data de retorno para São Paulo.

Enquanto o pai resolvia as suas pendências na Capital de Minas Gerais, Adonis fez a prova da primeira etapa para o curso de administração, quando voltou para casa estava confiante que alcançaria a nota de corte para poder passar para a segunda etapa do vestibular. Enfrentava uma sensação estranha, não de felicidade, mas como se estivesse matando algo dentro de si. Essa sensação veio junto com as lembranças dos seus sonhos em ser ator ou artista plástico e da escolha do curso influenciada pelo pai. Nessa confusão de sentimentos, na cabeça de Adonis chegou a passar a ideia de propositalmente não passar na segunda etapa caso fosse classificado na primeira. Naquele momento pensou também em “chutar o balde”, jogar tudo para o alto e seguir o caminho que ainda povoava seus pensamentos. Lembrou-se do verso de uma música que um dia ouvira em uma dessas “rádios que tocam músicas do mundo” como dizia seu pai em reprovação às emissoras não gospeis, e a letra era assim: “E por você eu largo tudo, carreira, dinheiro, canudo, até nas coisas mais banais, pra mim é tudo ou nunca mais”. Mesmo escondido dos pais, Adonis era fã de Cazuza. Achou aqueles pensamentos exagerados e deu de ombros para eles, mas as lembranças do alerta do pai sobre as chacotas de que eles seriam alvos por ele escolher um curso repleto de “viados e sapatões” também já não faziam qualquer sentido. Lembrou-se também de todos os sermões em que ao longo de sua vida ouvira seu pai pregar contra os homossexuais, mas apesar disso, naquele dia, as lembranças daqueles sermões já não conseguiram lhe provocar qualquer sentimento negativo em relação a eles como um dia já chegou a sentir. Sentiu pena de si mesmo, apenas isso.

Quando saiu a lista de aprovados na primeira etapa, a confiança de Adonis de que alcançaria a nota de corte para poder passar para a segunda etapa do vestibular se concretizou e o nome dele constava na lista de aprovados. Junto com sua mãe e seu pai comemorou a vitória na primeira etapa do vestibular. Nesse dia, Severo dedicou o culto à vitória do seu filho na primeira etapa do vestibular e pediu para que seus fiéis orassem para que ele conseguisse passar também na segunda etapa. Adonis não foi ao culto naquele dia e o pai justificou dizendo que ele tinha que estudar muito para a segunda etapa do vestibular, mas a verdade é que desde o dia da prova da primeira etapa Adonis passou a não sentir mais vontade de frequentar a igreja do pai. Naquele dia da prova algo morreu em Adonis e algo havia mudado dentro dele, não sabia explicar o que era, mas decidiu que não lutaria contra aquele sentimento que o invadia completamente e que tanto lhe fazia bem.
  
Menos de quinze dias após o resultado da primeira, Adonis lá estava fazendo as provas da segunda etapa. No final da prova uma sensação diferente invadia toda a alma de Adonis, uma sensação de alívio e felicidade imensa com os pensamentos de que não poderia mais ir com frequência à igreja por causa dos estudos. E também a felicidade vinha da sensação maravilhosa da possibilidade de conhecer novas pessoas, respirar novos ares e porque não conhecer uma pessoa que pudesse vir a ser o grande amor da sua vida. Pensou que precisaria deixar a casa dos pais e viver a sua própria vida. Depois de ter feito a prova, Adonis foi embora para casa, mas naquele dia sentia que não era mais o mesmo rapaz, não era mais a mesma pessoa, estava feliz como nunca havia estado na vida. Sentia-se amadurecido, livre de certa forma, enfim, sentia-se imensamente feliz, completo. Dias depois, Adonis junto com sua mãe foi consultar a lista de aprovados na segunda etapa e como se toda a sua vida se resumisse e dependesse de ver naquela lista o seu nome, que diga se de passagem nunca gostou, preferia Adonis, seu coração veio à boca e lá estava o seu nome “Adoni-Zedeque Lima Alves” e gritou:

- Passei, porra! Estou livre!

Foi a primeira vez que Adonis disse um palavrão na sua vida, mas não se arrependeu mesmo estando ao lado de sua mãe que chorava e sorria ao mesmo tempo, mas ainda sentia aquela estranha sensação na espinha, mas ela pensou consigo mesma “É emoção, como diz Severo, é emoção!”. Pastor Severo estava no centro resolvendo questões das suas contas bancárias e dona Amália lhe telefonou feliz para dar a grande notícia de que o filho havia passado no vestibular. Severo pediu para falar com o filho ao telefone, mas Adonis disse que depois falaria com o pai pessoalmente. À noite, quando Severo voltou para casa, Adonis se encontrava trancado em seu quarto e ouvia aquelas músicas que o pai sempre tratava como “músicas do mundo” e eram proibidas naquela casa. Muitas vezes Adonis ouvia escondido essas músicas, mas naquele momento ele nem mais se preocupava em manter o volume do som mais baixo. Adonis ouvia “A tua piscina tá cheia de ratos tuas ideias não correspondem aos fatos. O tempo não pára” Adonis adora esses versos. 


Nem mesmo a felicidade pelo filho ter passado no vestibular impediu que Severo desse uma bronca em Amália. Muito nervoso, Severo falava alto dizendo que Amália tinha que chamar atenção do filho pela sua desobediência. Irado Severo gritava:


- Não aceito esse tipo de música que você está deixando seu filho ouvir aqui dentro da minha casa!

Adonis estava realmente mudado. O pai lhe chamou para ir à igreja agradecer aos fiéis pelas orações, mas ele disse que não poderia, alegou que precisava preparar alguns papéis para fazer a matrícula, mas ele já havia preparado toda a documentação mesmo antes de saber o resultado final do vestibular.

O dia da matrícula seria o dia em que Adonis iria comemorar de verdade a sua entrada na USP, ficou sabendo por colegas do cursinho que o trote seria apenas os homens se vestirem de mulher e desfilarem pelo campus com os rostos pintados e com uma placa escrito “bixetes”. Tudo era animação para Adonis e apesar do seu pai ter tentado proibi-lo de participar do trote, para ele isso seria uma espécie de novo batismo para o começo de sua nova vida. Ele não abriu mão de participar do trote. Não quis ir com o pai de carro, pois havia combinado com colegas de se encontrarem e irem de ônibus e metrô.
         
O trote realmente foi um verdadeiro "batismo" para Adonis que se divertiu como nunca havia experimentado em toda a sua vida. Os futuros colegas de sala marcaram de ir à noite para um barzinho que fica próximo ao campus para fechar o dia com chave de ouro. Adonis nunca foi um rapaz de frequentar barzinhos, seu pai sempre via isso praticamente como um desvio da igreja e de Deus em direção as coisas mundanas, mas dessa vez ele não queria perder a oportunidade de comemorar a sua entrada na universidade e o início de uma vida nova em companhia dos seus futuros colegas calouros e veteranos. Queria experimentar novas sensações, queria ser feliz, ser livre, enfim, queria viver. Adonis parecia que queria viver naqueles dias toda uma vida que não foi vivida. Ficou combinado entre os colegas que para zoarem no bar levariam roupas de mulher como as usadas no trote durante a matrícula.

Quando chegaram, o bar já estava movimentadíssimo. Adonis ficou maravilhado, encantado com tanta gente diferente, interessante e bonita, conheceu várias pessoas, conversou sobre o período do curso pré-vestibular, bebeu um pouco com seus colegas que riram muito quando ele disse que nunca havia tomado qualquer bebida alcoólica. “Adonis, perdeu a virgindade!” gritavam os colegas em tom de zoação. Adonis dançou, desfilou vestido de mulher, riu, brincou, enfim, esqueceu da vida e quando olhou para o celular havia várias ligações do seu pai e do telefone fixo da sua casa. Não retornou, pensou em ligar quando estivesse indo embora, mas preferiu enviar uma mensagem ao pai dizendo que estava tudo bem e que não se preocupassem, pois ele voltaria para casa de táxi com amigos. Enquanto a farra no bar ainda continuava, Adonis e alguns amigos resolveram ir embora, já era madrugada e conseguiram uma carona até o centro de cidade. Chegando ao centro, decidiram ir para uma boate e curtiram até quase três da manhã.  Adonis e seus novos amigos, Rodrigo, Marcelo e Esdras já estavam meio bêbados e resolveram então ir andando pelas ruas até encontrarem um ponto de táxi.

Adonis sentia-se a pessoa mais feliz do mundo. Tinha a sensação de ter sido mais feliz naqueles dias, horas, do que fora em todos os seus 19 anos de vida. Abraçados, os quatro riam alto e se divertiam lembrando-se das piadas, do trote da tarde do dia anterior e com as histórias do bar. Faziam promessas de amizade eterna, pactos e outras promessas que os calouros sempre costumam fazer. Desceram os quatro abraçados e efusivos pela rua da Consolação até chegarem à Paulista ainda meio bêbados. Na verdade aparentavam mais bêbados de felicidade do que sob o efeito do álcool propriamente dito. Ainda se encontravam vestidos de mulher e com os rostos que haviam sido pintados ainda no bar e riam e achavam graça de qualquer coisa que encontrassem pelo caminho. Caminhavam pela Paulista, quando entraram na Rua Haddock Lobo, de repente avistaram um grupo de umas dez pessoas vindo em direção a eles. Mais perto puderam perceber que se tratava de um grupo de homens todos carecas, fortes e tatuados. Ao se aproximar, o grupo cercou os quatro amigos e começaram a insultá-los chamando Adonis e seus colegas de “Bichas escrotas!”, gritavam “Morte às bichas!” e partiram para cima dos quatro jovens com muita brutalidade, um dos carecas estava com o espécie de “tchaco” e desferiu um golpe no rosto de Adonis que caiu no chão e ainda tentou argumentar com os agressores dizendo:

- Não fizemos nada, somos calouros comemorando termos passado no vestibular, não somos de briga.

Adonis levou um chute no rosto enquanto tentava se levantar. Um dos homens dava uma gravata em Marcelo, e outros corriam atrás de Rodrigo e Esdras que conseguiram escapar e desaparecer numa esquina logo à frente. Os que perseguiam os dois amigos de Adonis, voltaram e juntos passaram a dar socos em Adonis e em Marcelo que tentavam se defender meio cambaleantes pelos chutes e socos que levaram no rosto e na barriga.

- Vamos livrar São Paulo e o mundo dessa raça abominável!

Gritavam os carecas enquanto continuavam uma série de socos no rosto e pancadas em Adonis, desferidas com o “tchaco” de um dos carecas. Adonis estava caído com o rosto bastante ensanguentado e sentia que o seu nariz estava quebrado e ainda chegou ouvir em meio aos chutes a frase:

- Vocês são doentes! Deus odeia vocês, suas bichas filhas da puta!

Adonis chegou a lembrar dos muitos sermões do seu pai em que ouvia coisas parecidas, mas a dor era tamanha que não conseguiu concatenar ideias. Já não conseguia enxergar nada, pois a sua visão estava comprometida, mas ouvia gemidos próximos dele que imaginava ser de Marcelo. Adonis com o rosto colado ao asfalto sentia algo frio sair da sua boca e escorrer pelo asfalto, era sangue. Antes de um chute que recebera na cabeça, Adonis ainda ouviu uma última frase antes que um outro chute provocasse um apagão total daquela cena de sangue e dor da qual ele era personagem:

- Morram, suas bichas doentes!

Já passavam das cinco horas da manhã quando o telefone do pastor Severo tocou com um número desconhecido. Era alguém de um hospital perguntando qual era o parentesco que ele tinha com Adoni-Zedeque Lima Alves. Assustado, mas frio, Severo respondeu perguntando ao mesmo tempo:

- É meu filho, o que aconteceu com ele?

A moça disse que ele possivelmente havia participado de uma briga com alguém e que estava muito machucado e pediu que ele comparecesse com urgência ao hospital e passou a localização. Dona Amália perguntou apavorada o que era, mas Severo apenas disse que Adonis havia brigado na rua. Dona Amália aterrorizada chegou a desabafar:

- Mas meu filho nunca foi de briga!

Severo vestiu às pressas o seu terno, pensou em ligar para o motorista que chegaria em poucos minutos, mas resolveu ele mesmo pegar o carro e ir em direção ao endereço do hospital que a atendente havia passado.
O hospital ficava a meia hora de carro da casa do pastor Severo nos Jardins, mas vinte e um minutos depois ele chegou com dona Amália que chorava e não entendia direito o que havia acontecido com seu filho. Severo não havia dado detalhes sobre a ligação do hospital para ela. Desceram às pressas do carro e na entrada do hospital perguntou:

- Onde está meu filho Adonis?

Foi a primeira vez que Severo chamou Adonis pelo apelido e a atendente em fim de plantão disse que iria chamar o médico, ao que Severo desesperado gritou:

- Não quero médico, quero ver meu filho!

A moça pediu calma a Severo e disse que o médico conversaria com eles e pediu que aguardassem ali mesmo, mas ele não obedeceu e saiu atrás da atendente que no corredor encontrou com o médico que vendo a cara de terror de Severo e Amália foi conversar com eles. Desnorteado, Severo perguntou:

 -Onde está meu filho, doutor, como ele está? Quero vê-lo!

O médico disse para Severo e sua esposa que Adoni-Zedeque estava naquele momento sendo atendido no CTI e que o estado dele era grave e que havia suspeita de traumatismo craniano, mas que ainda necessitava dos resultados de alguns exames complementares para se confirmar ou não essa suspeita. Com voz embargada Severo pediu:

- Posso ver o meu filho, doutor, pelo amor de Deus?

O médico explicou que o filho deles passava por uma tomografia naquele momento e que depois eles poderiam ir ao CTI para vê-lo apenas por alguns minutos por não ser horário de visitas. O tempo parecia não passar para o pastor Severo e Amália. Em meio a pacientes amontoados nas enfermarias daquele hospital público, Severo disse à Amália que pediria para que Adonis fosse transferido para um hospital particular com melhores condições. O médico neurocirurgião que atendia Adonis disse a Severo que precisaria de algum tempo para avaliar as condições para ele ser transferido, pois devido à gravidade do seu caso a transferência poderia agravá-lo ainda mais naquele momento.

Severo e Amália enfim conseguiram a permissão do médico para entrarem no CTI e ver Adonis. Ao se aproximar do box em que ele se encontrava , dona Amália o viu todo entubado e não resistiu, desmaiou, precisou ser amparada por uma enfermeira. Severo tentava conter as emoções, mas ao olhar para o rosto completamente desfigurado do filho chegou a duvidar e perguntar para a enfermeira:

- É meu filho?

E a enfermeira disse baixinho:

- Senhor, o nome do paciente tá escrito na identificação do leito.

 E com o prontuário na mão ao lado do leito, a enfermeira repetiu o nome que Adonis não gostava e disse:

- Adoni-Zedeque, é assim que pronuncia?

Severo respondeu com um aceno positivo da cabeça e foi em direção ao lado oposto onde Amália se encontrava ainda cambaleante. Nesse momento o médico apareceu e os chamou  para uma sala na saída do CTI e disse que a tomografia de Adonis havia detectado um traumatismo craniano, que o estado dele era gravíssimo, e que, portanto, a transferência naquele momento poderia ser perigosa. Dona Amália se desesperou. Severo com a mão na cabeça não sabia o que fazer. Perguntou ao médico o que realmente havia acontecido. Doutor Marcos disse que outro rapaz também havia chegado ao hospital junto com Adonis e que também estava muito machucado, disse também que recebera apenas a informação de que eles supostamente tinham sido atacados por um grupo de carecas no centro da cidade, mas pediu ao casal que se dirigisse até a portaria para conversar com a atendente para saber mais detalhes.

Na portaria, Severo e Amália em choque, quiseram saber da atendente que já largava o plantão, o que havia acontecido. Queriam saber como Adonis e o outro rapaz chegaram ao hospital. A moça reconhecendo o pastor Severo disse-lhe já indo embora:

- Irmão, me desculpe, mas eles chegaram aqui vestidos de mulher e seu filho também estava com o rosto pintado parecendo com esses travestis abomináveis que ficam aí pela rua.

Disse a moça para Severo com cara de menosprezo e desaprovação. E antes de ir embora a atendente do hospital finalizou:

-Os dois rapazes que deixaram eles aqui disseram que eles tinham sido atacados por um grupo de carecas perto da Avenida Paulista.

A atendente disse que precisaria mesmo ir embora porque senão perderia o seu ônibus e despediu de Severo e Amália:

 - Paz do senhor, irmãos!

Doutor Marcos havia aconselhado a Severo e sua esposa, se caso quisessem, que poderiam voltar para casa e retornassem no horário de visitas ou algumas horas depois, pois naquele momento tudo estava sendo feito para que Adonis recebesse a atenção que necessitasse e que assim que o quadro dele se estabilizasse providenciariam a sua transferência para outro hospital, como eles assim o desejavam.


O dia já havia amanhecido. Era por volta das oito da manhã, Severo muito abalado já entrava no carro para ir embora do hospital como o médico recomendara, foi quando o seu telefone tocou. Era a moça do hospital dizendo que o médico precisaria falar com ele com urgência. De um salto, Severo e Amália entraram de novo na portaria do hospital e ele disse bem alto:

- Sou o Severo, pai de Adoni-Zedeque, o que aconteceu?

 E o médico que já adentrava o corredor do hospital fez meia volta e os chamou para a uma sala ao lado e lhes deu a notícia:


- Senhor Severo, sinto muito, nós fizemos tudo o que podíamos, mas o filho de vocês não resistiu ao traumatismo e teve morte encefálica há alguns minutos. Sinto muito, fizemos de tudo, mas diante da gravidade das lesões e da quantidade de sangue que vazou para o cérebro formando vários coágulos ele não conseguiu resistir.

Desesperados, Severo e Amália perguntaram quase em uníssono:

- Mas isso não tem reversão, doutor? 

E doutor Marcos responde:

- Infelizmente não. Fizemos tudo que estava ao nosso alcance, mas o seu filho já chegou aqui em estado muito grave, bateram muito nele na região da cabeça, o caso dele era gravíssimo.

Severo e Amália eram o próprio semblante do desespero e como há muito não faziam, se abraçaram e desabaram num choro desesperador que se ouvia pelo ainda silencioso corredor daquele hospital. Em meio a soluços e choro desesperado, Amália gritava inconsolável:

- Eu quero meu filho, eu quero meu filho, meu Deus!

- Oh meu Deus! Porque o senhor levou meu filho desse jeito?

- Oh meu Deus! Eu não vou suportar viver sem meu filho, ele tinha toda a vida pela frente!

Uma senhora que estava chegando ao hospital assistiu ao desespero do casal e caminhou na direção deles querendo saber o motivo de tanto desespero ao que ouviu de Amália o desabafo:

 -Nosso filho foi espancado e acabou de morrer.

Era dona Berenice que revelou ao casal que o filho dela também estava internado ali muito machucado após ser vítima de um ataque homofóbico na Paulista de madrugada quando comemorava com amigos ter passado no vestibular da USP. Dona Berenice era a mãe de Marcelo, que também estava com Adonis e os outros amigos naquela madrugada. Severo muito abalado perguntou se o filho dele estava com o filho dela e dona Berenice respondeu que sim,  e que Rodrigo, amigo do filho dela, havia lhe telefonado de madrugada avisando que eles estavam em quatro quando sofreram o ataque de um grupo de carecas na Avenida Paulista. Rodrigo revelou ainda que ele e Esdras conseguiram fugir, mas Adonis e Marcelo, não. O rapaz havia dito que eles foram atacados por estarem abraçados e felizes e foram confundidos com gays pelo grupo de carecas agressores.
   
Dona Berenice muito chocada com a violência que o filho sofrera disse ao casal que assim que recebesse notícias do filho iria a uma delegacia registrar esse crime. Ela sugeriu que os dois também deveriam fazer o mesmo para que a polícia pudesse com isso procurar os assassinos do filho deles e que também haviam agredido brutalmente o seu filho. Nesse momento um sentimento de vingança invadiu Severo. Num primeiro momento concordou com a ideia da mãe de Marcelo, mas ao lembrar do que havia dito a recepcionista do hospital sobre o filho, teve medo que a repercussão do caso pudesse levantar suspeitas sobre o filho dele ser gay. Com ódio nos olhos que se misturava com o semblante de dor, Severo disse para Amália que denunciaria o crime. Pensou no momento em que encararia frente a frente os assassinos que haviam desfigurado o rosto do seu filho daquela forma e lhe tirado a vida. Sentiu ira. Foi aconselhado por dona Berenice a prestar queixa numa delegacia próxima à Paulista com Haddock Lobo, local onde havia acontecido o ataque homofóbico contra os seus filhos. Na cabeça de Severo muitos pensamentos se misturavam:

“Meu filho não era homossexual, não, não pode. Não pode ser, meu filho era homem”

Esse pensamento vinha em meio a outros numa busca de Severo por encontrar na memória uma prova para si mesmo que confirmasse a heterossexualidade do seu filho. Imerso nas suas memórias vagueava em pensamentos:

“Nunca vi meu filho com namorada, mas meu filho não podia ser gay, não. Meu filho não podia ser gay”
                                              
Esses pensamentos todos de Severo se misturavam com a lembrança da fala da atendente evangélica que o reconhecera dizendo que Adonis havia chegado vestido de mulher e com a cara pintada como “os travestis”.

Severo, Amália e Berenice chegaram juntos à delegacia. Quando conseguiram ser atendidos pelo delegado, Berenice tomou a palavra e relatou o acontecido dizendo que seu filho Marcelo e mais três amigos haviam sofrido um ataque de um grupo de carecas nas imediações da Avenida Paulista e que um deles tinha acabado de falecer. Relatou que Rodrigo e Esdras eram dois amigos que tinham conseguido escapar do ataque e que foram eles que algum tempo depois voltaram e socorreram os outros dois amigos e os levaram para o hospital.

Severo e Amália permanecerem calados e apenas observavam Berenice detalhar o que sabia ao delegado que diante da insistência dela prometeu chamar Rodrigo e Esdras para prestarem depoimento.

Vendo Severo e Amália ao lado de Berenice o delegado perguntou se eles estavam ali a sua espera. E Severo respondeu baixinho e quase sussurrando:

-Delegado, acabamos de receber a notícia da morte do nosso filho, ele foi uma das vítimas do ataque homo-fóbico  e estava junto com o filho dela.

Era talvez a primeira vez que Severo pronunciava a palavra homofóbico.

O delegado não entendendo a fala final, perguntou novamente para Severo:

- Ataque...o quê???

Ao ver que Severo não conseguiu pronunciar novamente a palavra, Berenice então respondeu:

- Eles foram vítimas de um ataque homofóbico. Pensaram que eles fossem gays.

E então o delegado perguntou:

- Mas os filhos de vocês são homossexuais?

De um salto e com um grito Severo levantou e respondeu:

- Não, delegado! Meu filho é homem e respeita a lei de Deus!

Disse Severo ainda usando o verbo no presente sobre o filho que acabara de perder. O delegado disse que iria ouvir os outros rapazes, mas especulou que poderia não se tratar de homofobia e que talvez fosse briga de gangues rivais.

Dona Amália que quase nem conseguia falar, questionou:

-Mas delegado, até agora tudo que sabemos leva a crer que foi um ataque homofóbico, confundiram nossos filhos com gays e...

Antes que Amália completasse a frase Severo a interrompeu e disse bem alterado:

-Delegado, nosso filho não é gay. O senhor precisa prender esses bandidos que mataram meu filho e enquadrá-los pelo crime que cometeram.

Nesse momento foi o delegado que interrompeu o pastor e dizendo:

-Senhor, entendo sua dor e vamos fazer de tudo para encontrar essa gangue, mas adianto que não posso enquadrá-los por crime de homofobia, não existe essa lei no Brasil.

E completou o delegado:

- Caso a gente consiga efetuar a prisão de algum dos agressores, o que podemos fazer é apenas enquadrá-los por lesão corporal seguida de morte. Esse é o procedimento nesses casos, mas temos que apurar primeiro para sabermos o que aconteceu de fato.

Disse ainda:

- No momento, o que posso adiantar para vocês é que crimes por motivação homofóbica têm acontecido com certa frequência nas imediações da Paulista.  Não faz muito tempo que um casal gay foi atacado com golpes de lâmpadas fluorescente no rosto, vamos investigar o caso dos filhos de vocês.

Finalizou o delegado já dispensando os três.

Em silencio Severo ouviu as palavras finais do delegado e depois chamou a esposa para ir embora. Dona Berenice também deixou a delegacia junto com o casal. Na porta trocaram números de telefones.

Antes de entrar no carro, Severo ouviu uma música que vinha de uma lojinha que vendia vinis antigos: “Por quem os sinos dobram? O tempo continua sua marcha, por quem os sinos dobram? Olhe para o céu antes de morrer é a última vez que ele olhará, rugido sombrio, rugido poderoso enche o céu que se despenca. A meta estilhaçada enche sua alma com um choro cruel”

Era rock o que tocava. Severo se lembrou que sempre proibira Adonis de ouvir essas “músicas do mundo” e sempre pregou que rock é música demoníaca. Lembrou-se também de certa vez que destruiu um disco de rock que o filho havia recebido como presente de um dos poucos amigos que tinha fora da igreja. Sentiu um pouco de remorso, mas entrou no carro onde a esposa Amália chorosa e desolada já lhe esperava.

No carro, o casal seguiu silencioso, o que se ouvia era apenas os soluços do choro da mãe de Adonis. Severo e Amália precisavam tratar das questões práticas para o velório e sepultamento do seu único filho.

No caminho, o carro de vidros escuros do casal cruzou com um grupo de pessoas que protestavam próximo ao MASP. Havia muitas bandeiras do arco-íris tremulando e Severo sentiu-se incomodado ao ver Amália olhando na direção daquela manifestação e rompeu o silêncio:

- Adonis não era gay, minha querida.

Ao que Amália colocando a mão sob o peito como se quisesse estancar a dor que fazia seu  coração  sangrar, naquele momento ainda conseguiu responder ao marido:

-No que isso importa, Severo? Nosso filho agora está morto, Adonis está morto! Minha vida se acabou!

Repetiu chorosa e com voz embargada e inconsolável dona Amália, mãe de Adonis. 



Autor: Jadilson Rodrigues